O caso Jordanésia

Tia era dessas pessoas que aumenta o volume quando o locutor da rádio anuncia uma de suas canções favoritas. Largava o que estivesse fazendo para viver o momento. Se fosse em ritmo lento ou floreado, bailava com a mão no ventre, como se um cavalheiro a conduzisse. Tocasse um samba rasgado e ela arrancava os sapatos, fervia na ponta do pé. Quem estivesse por perto, se contaminava com sua euforia. Voltarei a um antigo verão, para rever uma tarde daquelas, em que ouvíamos rádio e não pensávamos em separação. Faz tanto tempo.

– Adoro essa música!

Tia empurrou para o lado a vasilha com os feijões que estava escolhendo. Meteu o dedo no seletor do radinho e o moveu até o limite. Não me surpreendi. Alisando a pança do gato amarelão eu estava. Alisando, continuei. Ela adorava oito entre dez canções que tocavam. Das outras duas, gostava bastante. Assim que ouviu a introdução, fechou os olhos. Levantou os braços e passou a sacudi-los de um lado para o outro. Vó, como sempre, tentou disfarçar, mas o riso escapou. Mãe danou se esgoelar, acompanhando o intérprete. Tia protestou:

– Se toca, taquara rachada. Eu quero ouvir o cantor!

Mãe não deu confiança.

Jordanésia, uma moça que veio do interior de Minas e foi nossa vizinha por um tempo, se achegou sonhadora.

– Essa música… que linda… que beleza!

As quatro mulheres, cada uma a seu modo, pareciam enxergar seus desejos realizados. Prestei atenção na letra. Falava sobre um lago. De uma nova semente. Sobre umas janelas. E de felicidade. Não entendi muito bem.

Ao final da canção, tia retornou aos feijões e mãe retomou a leitura da revista. Jordanésia foi convidada a tomar café com pudim de pão. Correu encostar a porta do covil onde morava, que dava de frente com a nossa. Se abancou no canto da cozinha, alegrinha por ter companhia, com receio de incomodar. Era muito jovem e já amasiada com Maés, que a trouxe praticamente na bagagem, de uma visita que fez aos parentes. Digo assim porque, me lembro de Vó comentando que era uma judiação um homem grosseiro como aquele, carregar uma pequena delicada feito a Jordanésia para limpar suas porcarias, aturar as bebedeiras. E, ainda por cima, servir em cama e mesa.

Comemos pudim e continuamos a ouvir música, até que Jordanésia se retirou. Precisava também colocar as panelas no fogo e preparar o jantar. Antes de ir, comentou o quanto Maés era exigente com a comida, a organização das roupas, a ordem da casa e tudo mais.

– Se o tomate da salada não estiver picado em pedaços do mesmo tamanho, ele repara. Comida da véspera, não aceita, mas tenho que fazer uma boa quantidade por vez, para poupar o gás. Ele reclama quando seca o botijão. Não é todo dia que traz carne, mas quer comer carne todo dia. Pensa que sou mágica, que tiro bifes de trás das orelhas. Passa o dedo nos móveis para verificar se tem poeira. Estoura se a roupa está amarrotada, mas não compra um ferro de passar. Eu tomo o cuidado de recolher as peças da corda antes que fiquem esturricadas. Dobro tudo bem dobrado e coloco um peso em cima. Estou juntando o dinheirinho que ganho quando a senhoria me chama pra fazer algum serviço em sua casa. Quero ver se consigo arranjar um ferro, mesmo de segunda mão, mas não sei como vou explicar de onde veio o dinheiro, já que ele não gosta que eu faça esses biquinhos. Outro dia, ralhou quando contei que ela me pagou pra dar conta de um tanto de louça e limpar um bocado de verduras. Ele falou que não preciso disso, mas, quase sempre, me deixa com as latas vazias e sem uma moeda pra comprar o pão.  

Quando Jordanésia virou as costas, Vó ponderou em boca pequena:

– Criatura ordeira vai ali. Lavou e encerou o chão, esfregou as paredes, teceu toalhinhas, improvisou cortinados, areou as panelas. O buraco do excomungado nem parece o mesmo que se podia espiar de fora, quando ele vivia sozinho. E o jacu, não está satisfeito.

De madrugada, teve início uma confusão e um choro sentido ecoou pela vila. Vó não se fingiu mergulhada num sono profundo. Levantou da cama e nem tirou o mandrião flanelado. Passou a mão na cinta de couro que ficava pendurada no preguinho junto à penteadeira e saiu para ver o que ocorria. A zoada vinha da toca do Maés. Por sorte, ele não havia passado a tramela. Chegou da rua com a cuca cheia de cachaça e começou a acusar Jordanésia de ser preguiçosa, ameaçando surrá-la para que aprendesse a esperar por ele acordada e com a comida aquecida. Encurralou a coitada na parede. Sei disso pois, também saltei da cama quando Vó anunciou que ia ver o que estava acontecendo e a segui. Mãe, que numa rara noite de folga, estava com a gente, acompanhou na retaguarda. Tia também se posicionou em missão. Havia dormido lá em casa. Combinara uma faxina pra uma dona nas imediações no dia seguinte. As três invadiram o cativeiro. Eu fui executar a cobertura jornalística. Os outros vizinhos se fizeram de mortos. Eram do tipo que não mete a colher. Lá em casa, não havia homem pra estabelecer idiotices dessa natureza, nem repreender atitudes ou dar palpites do tipo: vamos deixar que os dois se entendam. Hoje brigam, amanhã estão se amando… ou: isso é besteirinha de casal. E, muito menos: Ele sabe o que está fazendo, mulher precisa mesmo de correção e cabresto. Não! Lá em casa, não havia quem promovesse ou estimulasse covardias dessa falta de qualidade.

Quando Maés percebeu a patrulha que se reuniu para defender Jordanésia, ficou que nem bombinha. Gritou, expulsando as que classificou de enxeridas:

– Tenho o direito de disciplinar essa peste que só faz comer e dormir às minhas custas! Sumam daqui! Intrometidas! Fuxiqueiras!

Enquanto ele se distraiu, o corpo trêmulo de Jordanésia, escorregou até o chão. Engatinhando, ela conseguiu escapar ao domínio que o covarde exercia. Nunca que me esqueço daquela cena. Apavorada, ela rastejou enquanto Vó procurava conter o criminoso, se protegendo de uma possível agressão, empunhando na cara dele a fivela do cinturão. Tia encheu um jarro que estava sobre a pia e deu um banho no Maés, derrubando a água pela cabeça do cretino.  Enquanto isso, mãe abraçou Jordanésia e a levou para o nosso cômodo. Maés, estranhamente, se sentou no chão e começou a choramingar. Vó foi incisiva:

– Experimenta ir atrás da menina e vai ver só pra quanto eu presto!

Saímos sem dar as costas e fomos verificar como estava Jordanésia. A encontramos ainda abraçada com mãe. Soluçava. Gemia. Acabou pegando no sono na cama de Vó, que se deitou ao lado dela e ficou segurando sua mão.

Todo mundo acordou bem cedo na manhã seguinte. Menos Jordanésia, que descansava como uma vítima resgatada de um longo sequestro. Mãe e tia foram trabalhar, assim como Maés. Ele procurava manter as aparências, encarnar o papel do chefe de família responsável. Do homem que agiu com energia, incitado pelo comportamento reprovável da mulher. Papel de coitado. Botou a cara na vidraça, já vestido no uniforme do posto de gasolina. Vó não demonstrou nenhum receio e ele falou em voz baixa, sem encará-la.

– Preciso pegar no batente.

Lamentou num tom de quem foi injustiçado, mas precisava seguir com a obrigação. Vó não pronunciou tico, nem taco. E, diante do desprezo com que foi tratado, ele se limitou a avisar:

– À noite, converso com ela.

Vó também ia trabalhar naquele dia, mas esperou que Jordanésia despertasse. Ela acordou com os olhos tão inchados, que mal se abriam. A impressão que dava é que nem sabia onde estava. Vó lhe serviu um golico de café. A ajudou a se levantar e a lavar o rosto, mesmo na pia da cozinha. Era o de menos. Ninguém precisou mandar. Me piquei para o quintal, ciente de que elas discorreriam uma conversa entre mulheres, que não era da minha conta. Sei dizer que, passado um tempo, as duas entraram no cômodo do Maés. Quando saíram, Jordanésia tinha trocado de roupa e carregava uma sacola. Vó acendeu o cachimbo e soltou baforadas no cangote de Jordanésia. Rezou em seu ouvido. Preparou um pão com ovo e entregou a ela, junto com duas bananas. Jordanésia se despediu de mim. E de Vó. A abraçou demorado. Subiu as escadas levando o farnel e a sacolinha. Nunca mais a vimos.  

À noite, Maés quis saber sobre o paradeiro da esposa. Encheu a boca pra dizer: “esposa”. Vó respondeu que não sabia de nada. Que antes de ir para o trabalho, deixou Jordanésia em pé. Só isso. Ele não insistiu. Passou uns dias ouvindo a mesma música seguidamente. Bebia e cantava. A vizinhança já andava farta. Ninguém aguentava mais ouvi-lo gritar que não era cachorro, não. O luto durou pouco, no entanto. Não levou um mês e ele apareceu com outra moça na vila. Mas ficaram por pouco tempo.  Maés se mudou com a nova esposa, sem dar até logo.

Faz tanto tempo. Hoje em dia, uma música bonita que toca no rádio, não causa o mesmo impacto que causava naquela época. É possível acessá-la em segundos numa plataforma. Repeti-la muitas vezes. Já não se aguarda pela dádiva de ouvi-la de repente, como uma benção, um bom presságio. Já não se considera o dia como de sorte, porque sua canção favorita tocou bem cedinho. Já não é urgente interromper uma atividade e viver o momento, sem ideia de quando voltará a acontecer. Mais prudente é adiar a emoção para daqui a pouco, depois de encerrar a tarefa. Salvar para escutar com calma. Mais tarde. Primeiro a obrigação.

Faz tanto tempo. Tem vezes em que, andando pela cidade, examino feições que me lembram Jordanésia. Vó nunca revelou o destino que ela tomou. Se voltou para sua cidade no interior. Se resolveu tentar a vida por aqui. Eu fico com a impressão de que a vejo de relance quase sempre. Na verdade, parece que a procuro. Numa esquina. Num ônibus. Se me deparo com um semblante pesaroso estampado num rosto bonito, penso que pode ser Jordanésia. Se observo uma andarilha vasculhando uma caçamba de lixo, me pergunto: Será? Mas, cultivo esperanças também. Instintivamente. E, quando vejo uma mulher sorrindo, gargalhando, dançando em alguma roda de samba da vida ou fazendo compras na feira, desejo ardentemente: Tomara!

Faz tanto tempo. E ainda fico imaginando o que Vó e Jordanésia conversaram, antes dela partir. As conversas entre mulheres, agora, são da minha conta. Procuro não fingir que estou mergulhada num sono profundo. Tento meter a colher, empunhar o cinturão. Não me fazer de morta. Nem sempre consigo despejar o jarro d’água, mas procuro estar disponível para um abraço. Para segurar a mão.     

Faz tanto tempo. Vasculhando os arquivos da memória, revejo os furos de reportagem que cobri durante a infância, acompanhando a atuação das mulheres da minha vida em diversas ocasiões. Nós, que não pensávamos em separação, nos separamos. Quem diria. Finalmente, redigi a matéria sobre o caso Jordanésia e tive a canção de Paulinho da Viola como trilha. A canção que a encantou, naquela tarde de verão. Desejo que seu coração tenha se tornado um lago tranquilo. Que a semente de um novo amor, tenha nascido nele. Que Jordanésia tenha conseguido reabrir as janelas da vida. Que tenha cruzado com a felicidade em algum lugar onde a dor não tem razão. Agora eu entendo.

Onde a dor não tem razão

Canção composta por Elton Medeiros e Paulinho da Viola       

Arquivos inúteis

– Dinheiro posto fora!

Vó reclamava todas as vezes em que um novo álbum aparecia lá em casa.

– Tua mãe gasta com bobagem, enquanto tem tanta coisa urgente pra comprar…

A mãe se esforçava pra me deixar alegrinha. A gente se via tão pouco. Vez em quando, ela cometia a extravagância de me trazer um mimo, quando voltava pra casa depois de trabalhar sem folga por dias seguidos. Quase sempre, eram álbuns. Uma vez adquiridos, bastava que ela trouxesse um ou dois envelopes de figurinhas e eu ficava entretida.

Eu tinha uma amiga na escola. Um dia, ela me pediu para estender a mão e fechar os olhos. Trazia um presente. Uma figurinha. Agradeci contente. Ela ficou satisfeita quando eu disse que não era repetida.

– Que bom! Encontrei na rua, mas não tenho álbum.

– Você quer colar?

– Quero!

Aplicou cuidado cirúrgico à operação.

Acho a vida um pouco parecida com um daqueles álbuns. Os espaços vazios, eram objetivos. As figurinhas repetidas, decepções. As douradas, raras, equivaliam às conquistas. O rito de descolar o papel do adesivo e mirar no quadradinho sem deixar torto, aos desafios. Pouca gente conseguia completá-los. De repente, as figurinhas sumiam das bancas. O jornaleiro explicava que já havia um novo álbum. Outro tema, outros adesivos. O antigo, perecia. Inchado de sereno, esquecido no quintal. As folhas coladas umas nas outras. Incompleto. Ou, ia parar numa caixa de inutilidades. Sofria roído pelas traças até, finalmente, ser descartado numa faxina de sábado.

Um dia, mãe trouxe um conjunto de canetinhas brancas que tinham umas florinhas desenhadas pelo corpo. Existiam caixinhas com doze, vinte e quatro e trinta e seis cores. E só com seis. Uma colega antipática que ocupava a carteira ao lado, caçoou do meu estojo com apenas seis canetinhas, quando o acomodei perto do caderno. Minha amiga, ao contrário, quando botou os olhos na caixinha, ficou encantada. E me felicitou.

– São lindas!

Invisto tempo tentando rememorar o nome daquela boa amiga. Infelizmente, não me recordo. Mas, do nome da antipática, eu me lembro.

Tem coisa que é coisa da vida

Outro dia, fazendo a lista da feira, cismei com um negócio. Eu não sabia qual era o nome da mulher da banca de temperos. Ando sendo assaltada por essas constatações. Tem pra mais de vinte anos que compro na mão daquela dona. Minha filha era pequeninha. Em pé de bailarina, colava o queixinho ao tabuleiro pra observar o moedor. Olhos abismados, conhecendo o colorido de cada cumbuquinha repleta de pós, flocos, folhinhas, granulados.  Há mais de vinte anos frequentando a barraca da mulher falante, que gesticula e põe caretas, descobri que, não sabia o nome dela. Que ela não soubesse o meu, tudo bem. São centenas de fregueses. Mas, ela é uma só. Quer dizer. Não é a única que vende temperos naquela feira, mas, é a única em sua banca. Tem uma figura marcante. Usa uma pochete e calcula o troco com rapidez. Atende a todos com grande agilidade, temendo perder o freguês que chega na ponta de lá, enquanto serve o que está na ponta de cá. Se aproxima sempre perguntando: – O que vai hoje, patroa? E, antes de encerrar o pedido, investe:

– Cebola, alho, gengibre, limão. Ainda tem?

 Seu penteado nunca mudou. Assim como não notei um quilo a mais ou a menos se instalar em seu corpo nas últimas duas décadas. Uma vez, passando muito cedo pela rua da feira de domingo, a vi manobrar um carro grande. Trazia no bagageiro a lona e os suportes. Confesso que fiquei surpresa. No fundo ou no raso, sei lá por quê, ou sim, sei muito bem, eu imaginava que, a mulher da banca de temperos, carregava a pé os seus volumes. Sob sol ou chuva. Que arrastava um pesado carrinho pela madrugada. Mas, ela é proprietária de um automóvel bastante amplo, onde transportava também o menino que, ao desembarcar, corria de barraca em barraca, experimentando frutas e porcariadas. Pelo meio-dia, já exausto, se deitava sobre um acolchoado e dormia aos seus pés. Agora, homem feito, a auxilia no atendimento. Ele também mói os grãos de pimenta duas vezes, como eu gosto. Mas é lento na hora de fazer troco. Se embaraça um pouco.

Planejo abolir o hábito de utilizar pimenta-do-reino. Ouvi dizer que o consumo causa graves danos à saúde. Ando sendo acometida por preocupações desse tipo. Pode ser que, a mulher da banca de temperos ande preocupada também. Não sei se ela usa pimenta-do-reino quando cozinha, mas, pensando bem, não a tenho visto atender à freguesia equilibrando o cigarro no canto da boca, como sempre foi seu costume. Pode ser que tenha largado de fumar. Ou, pode ser também que, com a ajuda do filho crescido, ela consiga se retirar para seu instante de relaxamento. Assim, não incomoda os clientes com a fumaça. E respeita às leis que restringem os locais onde é permitido fumar. Há mais de vinte anos e, quem sabe, há muito mais de vinte anos, vi pessoas fumarem em elevadores e trens. Em repartições públicas e dentro de hospitais. Bom, na verdade, não tem mais de vinte anos que vi alguém fumando dentro de um hospital. Nem quinze. Nem cinco. Não fornecerei detalhes, pois alcoviteira nunca fui.

Recentemente, a máquina débito-crédito foi colocada à disposição da freguesia na banca de temperos. O menino, digo, o rapaz a manipula com facilidade e pergunta mecanicamente ao cliente antes de emitir o comprovante:

– Quer que eu imprima sua via? 

Já a mulher, é lenta ao operar a maquineta. Se embaraça um pouco. E jamais pergunta se o freguês deseja a cópia do comprovante. Aperta o botão, seguindo os passos que, visivelmente, se esforçou bastante para assimilar. Aguarda a bobina cuspir duas partes iguais do papelzinho. Entrega uma e arquiva a outra na pochete. Qualquer coisa como: o que é certo, certo é! Assim aprendeu e assim procederá. Parece-me que, temos algumas coisas em comum. Somos um tanto sistemáticas. Nos últimos vinte anos, abandonei vícios, retomei hábitos. Incluí e excluí costumes. Já não gosto muito de pagar por mercadorias com dinheiro. E, quando não recebo notas discriminando os produtos que adquiri, sempre aceito a minha via. Já presenciei questionamentos sobre o pagamento de mercadorias. Vi um homem correr atrás de uma senhora a acusando de não ter acertado um copo de caldo de cana. A pobre se assustou e afirmou ter pago sim. Com a única nota de cinco que possuía. E que havia sido substituída por uma de dois, o troco que ele mesmo lhe havia entregado. Protestou com admirável serenidade. Imagine se ia se ia sujar com uma bobagem daquelas. Uma mulher da sua idade. O palerma se convenceu rapidamente de que estava enganado. Recuou sem graça. A senhora seguiu perplexa seu caminho, sob o sol que nos castigava naquele dia. O efeito refrescante da garapa foi anulado. Ela suava toda a revolta que sentiu com o insulto. Tivesse dado tempo e eu bem que o confrontava. Exigia que se desculpasse com rigor. Mas fugiu depressa o bestalhão. 

A mulher da banca de temperos fustiga o rapaz quando o apanha distraído. Há momentos em que chegam muitos fregueses ao mesmo tempo. Ela arranca o moço de seus torpores juvenis batendo palmas. Compreendo bem o que ocorre. Finjo não perceber para não o constranger. Garotada! Colocam a gente de cabelo em pé. Dizia assim a comadre Doquinha: – Depois que filhos pari, nunca mais sossegada comi, nem dormi. As pessoas caçoavam quando ela se utilizava daquele ditado, já que era viúva desde muito moça e não tinha filhos. Tem pra bem mais de vinte anos, certamente, bem mais de vinte anos, que partiu comadre Doquinha. Me lembro de Vó ter ficado aborrecida. Já se viu? Falta de sorte a comadre morrer em véspera de natal. Eu também fiquei picada. Ao invés de ir para a casa dos primos, fomos ao velório. Se bem que, serviram canja e rosquinhas fritas. Sofri por uns dias, receando que o espírito viesse me assombrar. Enquanto Vó transferia para o nosso terracinho a Lágrima de Cristo, pela qual comadre tinha muito apreço, confessei meus temores de topar com a assombração. Vó gargalhou, claramente, me considerando petulante. Imagine se a finada ia perder tempo me assombrando. Ainda que fosse o caso de a alma ter que penar por uns dias, de certo, tinha gente mais importante para ela se mostrar. Quem sabe seu Dino alfaiate, que a visitava sempre em tardes de terça-feira. Um dia perguntei à Vó por que é que seu Dino, que era casado com dona Estelita-Corcunda, ia tanto à casa de comadre Doquinha. Por acaso eram parentes? Vó, que estava entretida retirando a pele de uma língua que ia preparar ensopadinha, a pedido de nosso vizinho Clécio, largou a faca sobre a pia. Baixou a cabeça. Fechou os olhos. Suspirou profundo. Parece que anoiteceu de repente. E, levando nome de alcoviteira duma figa, fui dormir soluçando, as palavras de Vó, retinindo em meu ouvido: -Tem coisa que é coisa da vida. De todo modo, achei indelicado da parte do fantasma de comadre Doquinha, não escolher minha pessoa. Fiquei mesmo melindrada. Quer dizer então que eu não era digna de ser assombrada? Logo eu, que buscava fumo na venda sempre que ela solicitava? Vó estava muito enganada. Se alguém merecia receber a visita da morta, esse alguém era eu. Também era uma grande injustiça Vó me acusar de alcoviteira. Quando as freiras vieram retirar da casa os pertences de comadre Doquinha, que também não tinha parentela, bem notei que Vó havia enrustido o vaso de Lágrima-de-Cristo atrás da porta de nossa cozinha. Mas, quando o motorista das irmãs perguntou se havia mais alguma coisa para colocar no carro, ela fez que não com a cabeça. E eu fiquei bem quieta. Como alcoviteira nunca fui, não a denunciei. Soube de outros segredos também e fui sempre muito discreta. Não estava nem doida de não ser.

Apesar de tudo, com uma amargura envernizada de firmeza, Vó sempre me ensinou a não temer os mortos. E a me acautelar pelos vivos. Não nego que, quase sempre, no meio de estranhos, me amofino. Boto uma cara sisuda. Me cerco de prudência.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

Planejei ir à banca de temperos, mesmo sem ter muita precisão naquela semana, agoniada de me livrar daquele agastamento. Ia ter feira na sexta e no domingo. Mas, na sexta, o toró veio brabo. No domingo bem cedo, passei a mão na sacola e me mandei. Chegando à barraca, procurei disfarçar a ansiedade.

– Bom dia, minha patroa! O que vai hoje?

– Bom dia! Veja uma medida de pimenta-do-reino, por favor.

– Moída duas vezes?

– Sim. Obrigada!

Rodeei, enquanto a manivela girava. Alguns vendedores possuíam já moedores elétricos. Mas, ali, o processo ainda era manual.

– E o que mais vai, minha patroa? Cebola, alho, limão, colorau…ainda tem?

– Pode ser uma bacia de cebola. Dessas grandes. Sua mãe? Cadê?

O rapaz respondeu sem levantar os olhos.

– Minha madrinha? Hoje não vem.

Quase que estourei, de tão sem graça.

– Desculpe. Sempre pensei que fosse sua mãe.

– Tem nada não. Quase todo mundo pensa. E é como se fosse.

Me refiz.

– Sim, pois então. Onde está sua madrinha?

– Viajou para o interior.

Investi.

– Mas, está tudo bem com a…como é mesmo o nome dela?

– Diva. O nome dela é Diva. Está escrito bem ali. Nas madeiras de cima. Sim está tudo bem. Foi só descansar um pouco mesmo.

Olhei para o alto e, de fato: sobre o verde escuro, se destacavam as letras em amarelo: Banca da Diva. Nos últimos vinte anos, eu nunca que tinha reparado. Diva… eu havia cogitado uma porção de nomes, enquanto cismava. Lúcia. Tereza. Graça. Estive quase certa de que era Conceição. Também pensei em Sueli.

-Vai ser no débito ou no crédito?

– Débito. Por favor.

– Quer que eu imprima sua via?

– Não. Não é preciso. Até a semana.

Caminhei repleta de repentina intimidade, tomada de ternura. Diva criou o afilhado desde pequenininho. Será por quê? Tem coisa, que é coisa da vida… agora, enquanto ela se retirava para um respiro, ele a substituía, reproduzindo fielmente a maneira como ela conduzia o negócio. O moço da banca de temperos… o moço? Girei o calcanhar.

– Veja só que cabeça a minha. Esqueci de pedir açafrão.

– Tem nada, não. Quanto vai? Duas medidas? É bom a senhora pensar bem, pra ver se não falta mais nada.

– Tem razão. Mas uma medida só é suficiente. Como é o seu nome?

– Adriano.

Adriano…olhei para o alto novamente.

– Seu nome não está escrito nas madeiras.

– Não. Nem nunca vai estar.

Uma sensação de angústia ameaçou a ternura que me visitava. Quase decepção. Será que ele, na verdade, não se agradava daquela tarefa? Será que a cumpria sem apreço, apenas por obrigação?

– Eu estudo farmácia, dona.

– Ah… é?

– Sim. Mas, aprendi direitinho tudo o que madrinha me ensinou. Na precisão, não passo fome. Em qualquer lugar desse mundo, consigo me sustentar do tempero, com dignidade. Só que, digo com muito orgulho: se tiver que ser assim, batizo o negócio de Banca da Diva, sabe? Em homenagem à madrinha.

Aliviada. Me emocionei com aquela declaração.

– Que bonito de sua parte pensar assim.

E animei.

– Me diga uma coisa. Por acaso, sua madrinha parou de fumar?

Adriano me encarou desconfiado.

– Que eu saiba, não senhora.

Dessa vez, paguei a conta com uma nota miúda e me retirei apressada. Nossa Senhora da Aparecida! O menino devia estar me tomando por alcoviteira. Que vergonha nacional!

A testemunha

Quando Vó chegou de visitar comadre Dália, a confusão estava armada na Vila. Disse Vó que, ao avistar a Baratinha estacionada em frente à entrada, com lâmpada acesa e tudo, o coração gelou. Incêndio que não devia ser. Se fosse, teriam mandado o caminhão dos bombeiros. Diz que se arrependeu de não ter me carregado junto pra levar o farnel de comadre Dália, como era seu costume. Considerou o sol muito forte e achou que eu já ia molezinha. Antes tivesse me fustigado. Antes tivesse deixado pra visitar comadre mais pelo fim da tarde. Antes comadre Dália passasse a angu. Da esquina, até nossa cozinha, Vó elegeu não sei quantos motivos para a presença da polícia. Todos eles, me envolviam. Diz que desceu as escadas sem nem sentir as pernas. E viveu um alívio grande quando me encontrou no mesmo lugar onde tinha deixado: em frente à pilha de discos, selecionando volumes para ouvir quando tivéssemos recursos pra trocar a agulha gasta da vitrola. Me beijou na testa. Fiquei alegrinha. Perguntou meio sem jeito de me suscitar à futrica:

– Sabe o que houve lá fora?

Botei uma cara desinteressada.

– Não sei não, senhora.

Notei um jeito rompante se acomodando sobre Vó. Orgulho. Não éramos dadas à mexericos. Tínhamos classe.

Vó tomou a jarrinha vermelha. Decidiu aguar as plantas no terraço. Quando entrou, veio com a notícia.

– Levaram Nazaré mais a Ciléia para o xilindró. Devem passar a noite na grade, pra deixarem de selvagerias. Diz que uma rancou cabelo da cabeça da outra. Um vexame! A bem da verdade, ninguém sabe como foi que a rusga teve início. É por isso que grampearam as duas sujeitas. Vem me ajudar a catar feijão. Daqui a pouco, é hora da Ave-Maria. Vamos pôr a moringa na frente do rádio, pra água ficar benzida. Água benta não faz mal a ninguém.

Fomos cuidar da obrigação, obedientes filhas de Deus que éramos. Dali a pouco, a esposa do senhorio, chamou baixinho, do jeito dela. Vinha trazendo um bule de café recém-coado como cortesia. E semeou:

– A senhora soube do calvário?

Vó arregalou os olhinhos indecisos.

– Assim… por cima. Eu nem estava em casa. Sabe como é…fui acudir a pobre comadre Dália que não está nada boa…

Em seguida, comadre Doquinha, anunciou entrada, com desculpa de dar um recado. Se abancou. A última a se achegar foi a Neusica, que faxinava a casa da senhoria e veio avisar que tinha terminado o serviço.

Desfiaram o rosário. Passou a hora da Ave-Maria. O feijão, nada de ir para o fogo. Enxugaram o bule de café.

– Diz que tudo começou porque Nazaré pegou a Ciléia se engraçando para o lado do Chico.

– Essa Ciléia nunca me enganou. Sujeita mal encarada.

– O marido é um coitado. Sai pra trabalhar e ela se esbalda! Também… o velho sabe que ela o atura só por causa do sustento. É bem feito! Largou a esposa de tantos anos pra ficar com essa boa bisca.

– Tenho comigo que foi briga por causa de dinheiro. Nazaré tem fama de tomar emprestado e não pagar.

– Será?

– Eu não sei. De todo modo, quem garante que não é Nazaré quem anda dando mole para o velho que, quando se embebeda, solta a nota fácil, fácil. Vive caindo de bêbedo. Ciléia amarga ao lado dele a troco de embolsar o salário, isso sim! Deixa para o infeliz somente o da cachaça.

– Ah! Mas pode bem ser mesmo…

– Pois, acreditem! Foi como eu disse para as senhoras: a Ciléia mais o marido de Nazaré, estão se engraçando. Por isso, ocorreu a briga.

– Valha-me Deus…

Vó ouvia a tudo calada. Não dizia tico, nem taco, só fazia cara de abismada. Eu acompanhava a acareação disfarçando que nem estava prestando atenção. Aquilo não era conversa pra criança, isso ninguém precisava me dizer. Recapitulei o ocorrido dentro da minha mente:

– Por que tu não bota o balde perto da corda? O tempo que gasta caminhando toda hora com uma peça na mão, indo e voltando. Eu hein. Me deixa zonza… e demora mais a desinfetar daqui. Quero ver quanto vai sobrar de corda pra eu usar também.

– O balde está pesado. Prefiro deixar mesmo onde está até ter menos roupa e o peso diminuir. Periga rachar. Estourar a alça.

– Também. Tua roupa não é bem torcida, vai para o balde com toda a água e, do mesmo jeito, para o varal. Periga rebentar é a corda, com tanto peso d’água. Tu tem problema nas juntas das mãos, é? Que te impede de torcer? Nem as velhas que sofrem com reumatismo trazem a roupa assim. Tem vergonha, não é? Um mulherão do teu tamanho… cheia de saúde!

– E tu? O tempo que gasta cuidando de minha vida, podia dedicar na limpeza do pardieiro que é o teu barraco. Aqui! Espia! A casa dos porcos, fede menos.

– O que fede é essa tua roupa mal lavada que leva dias apodrecendo no molho e não há enxague que dê jeito. Fica feito carniça. Tuas crianças, na escola, levam apelido de defuntos. Cheiram tal e qual. Perainda! Quem é tu pra por reparo em minha casa, que trago asseada? Logo tu que é uma preguiçosa. Acorda pra mais de meio-dia e bota os meninos tudo freado de baba e marcado de ranho, sem banhar nem nada, atrás de pão quente. Quando acha coragem de passar uma vassoura na casa, lascar uma panela no fogo é quase escuro.

– Tu está é muito preocupada com a roupa que eu lavo. Se fede ou não fede. E com a minha casa. te mostro já quem é que vai virar defunta!

Foi neste momento que passaram a se engalfinhar. Sim! Os diálogos estavam muito frescos na minha cuca. Nada haviam dito as duas damas sobre dinheiros ou maridos. Eu tinha vontade de tomar parte no assunto e contradizer as versões equivocadas. Mas, Vó nunca que me daria permissão para participar no assunto da mulherada. E outra: como eu ia fazer pra explicar que, assim que ela bateu a porta, saí atrás. Esperei até que subisse a escadaria e ganhasse a rua e, só então, tomei o rumo do chiqueiro e fui espiar os porquinhos novos, ignorando a orientação:

– Não bote o nariz pra fora até eu chegar!

E vi como tudo começou. De fio a pavio. Fui acometida de um siricotico de agonia, ouvindo uma história sem pé nem cabeça a cada rodada. No dia seguinte, acordei toda grosseira de urticária. Prometi que, quando ficasse adulta, elucidaria o motivo da briga entre Nazaré e dona Ciléia. E estou fazendo isso agora. Não como eu gostaria, tomando parte na assembleia com as distintas senhoras da nossa Vila. Suspeito que, assim como Vó, todas elas já tenham cruzado a fronteira. Mas, a vida é complicada desse tanto, mesmo. Quando a gente acha que vai alcançar o objetivo, vem alguém e arrasta a linha de chegada um pouco mais pra frente. E a gente não alcança. Eu nunca que vou participar daquela roda. Mas, promessa é dívida.

A todos, faço saber:

 Nazaré, mais dona Ciléia se estranharam naquele verão, em mil novecentos e oitenta e dois por causa do varal coletivo. Só isso. Mais nada.

Recomeço

Me lembro perfeitamente do dia em que ela veio morar com a gente, oriunda da sarjeta, descartada na velhice. Mesmo tendo sido acomodada em lugar de destaque, na mais espaçosa prateleira do guarda-louça, nos primeiros tempos, parecia deslocada. Entre pratos abrutalhados e copos grosseiros, vizinha de uma jarra plástica encardida e de uma xícara solitária, sentia-se analisada. Integrante do sofisticado aparelho de jantar importado do estrangeiro para compor o enxoval de dona Hortênsia, a monumental travessa seguia aturdida, expulsa da convivência doméstica por causa de um lascadinho na borda. Vó a resgatou do lixo, ignorando a sentença de inutilidade a qual fora condenada.

A frágil dama não estava habituada a receber conteúdos ordinários em seu interior. Acolhera finos manjares por toda a sua existência, enfeitando a mesa sempre farta, na mansão dos Barros de Mendonça. Até o dia em que, depois de reinar absoluta durante um jantar de gala, servindo de esquife para o cadáver de um pato com laranja, teve o destino selado. Transportada pelas mãos inábeis e desabituadas ao trabalho da sogra de dona Hortênsia, foi atingida em cheio pela desgraça. A desajeitada mulher, mais cheia de boas-intenções do que o inferno e já um tanto alta, devido à quantidade de vinho que absorveu durante a reunião, tropeçou na franja do tapete. Estabacou-se. A travessa foi parar de um lado. O esqueleto do pato, do outro. A prestativa senhora, estendida no chão do corredor, ainda teve forças para responder a elementar pergunta elaborada por seu estupefato marido:

– Caiu?

– Não…deitei.

Desfeito o cenário de guerra, constatou-se o dano causado à delicada terrina. Um irremediável lascado na beirada. Imperceptível para muita gente. Inaceitável para dona Hortênsia, pessoa muito exigente com a apresentação dos componentes de seu imaculado arsenal de utensílios. Após avaliação e diagnóstico, a peça foi imediatamente descartada. Proibida de reintegrar o espaço nobre onde descansava soberana, aguardando oportunidades de brilhar.

 Levou algum tempo até que fosse escalada ao serviço na nova residência. Como uma moça fina recém-chegada a um prostíbulo popular, era poupada da clientela sórdida. Vó não considerava nenhum alimento digno de se deitar sobre a aristocrática tigela.

        Até o dia em que nosso vizinho Clécio, detentor dos mais indecorosos anseios gastronômicos, propôs que Vó se dedicasse ao preparo de um despudorado ensopado. De língua.

        Assim deu-se a reestreia da diva. O retorno ao estrelato. Sobre a alva e engomada toalha de mesa dominical, foi cuidadosamente depositada, à espera de recheio. Ao som de um bolerão, que escapava do rádio de seu Velasco, inebriada pelo aroma rude de novos temperos, foi preenchida pelo exuberante ensopado. A carne de língua lambendo suas paredes, o caldo quente ocupando todo o seu ambiente. Plena novamente, compreendeu como ninguém: há males que vêm para o bem.    

A saga do sagu

Era comum que em nossa casa, no domingo, alguma receita preparada nas cozinhas das patroas de Vó durante a semana, fosse reproduzida. Era qualquer coisa do tipo: se eles são dignos de manjares, nós também somos. Por exemplo: o estrogonofe com batatas, comida predileta do filho mais velho de dona Hortência, que estudava direito no interior do estado. Quando vinha passar férias, o jovem era tratado como rei. Tudo era feito para agradar ao futuro advogado, orgulho da família.  

É claro que, quase sempre, as reproduções se tornavam versões, ajustadas daqui e dali. Hoje em dia, poderiam ser chamadas de releituras. Ou desconstruções. Mas as adaptações não se davam por questões filosóficas, físicas, gustativas ou religiosas. Em geral, eram adequações de ordem econômica. Na casa de dona Hortênsia, o prato era preparado com filé mignon. Na nossa, com picadinho de acém. E olhe lá. Os cogumelos frescos, oriundos das estufas de um produtor, amigo do marido de dona Hortênsia, eram representados por pedaços douradinhos de cebola. No lugar do creme de leite, Vó utilizava como espessante farinha de trigo dissolvida em um pouco d’água. O conhaque com que se flambava a carne na mansão dos Barros de Mendonça, lá em casa, era substituído por uma talagada de cachaça, furtada do garrafão que ficava guardado debaixo da pia e que, segundo Vó, pertencia ao seu santo de devoção. Se estivesse dando chuchu na cerca de seu Armindo, era certo que Vó barganhava dois ou três dos mais verdinhos em troca de um punhadão de coentro, cultivado em seu canteiro envasado. O chuchu refogadinho fazia as vezes das batatas coradas salteadas na manteiga apreciadas por Marinho, que também gostava de alface lisa cortada bem fininha para a salada. Nós costumávamos comer serralha, que crescia aos montes debaixo do escadão. Nosso refrigerante era refresco de limão-rosa, do pé cultivado por dona Eupídia, muito embora o Portuga decretasse que os limões eram dele, já que o limoeiro estava fincado em sua propriedade. Mas, como o avarento não podia ficar de guarda o dia inteiro, era ele dar as costas e nos servíamos à vontade.

A sobremesa favorita do moço de dona Hortênsia era pudim de leite condensado. – Os olhos da cara, uma latinha! – Vó fazia questão de enfatizar, quando confeccionava um pudim para nós em datas especiais. A rigor, nossas sobremesas consistiam em compotas de frutas da época, colhidas nas árvores das redondezas. Como a que era feita com os mamões que nasciam em abundância no terreno abandonado. Nosso vizinho Clécio enchia sacolas e mais sacolas de mamão verde. Vó passava horas triturando aquela montoeira no ralador improvisado, feito com uma lata vazia de goiabada furada muitas vezes com um prego. Eu gostava de acompanhar a preparação, mas não apreciava o resultado do trabalhoso processo. Torcia o nariz, me recusava terminantemente a provar a papa do Hulk. Vó me classificava entojada e cheia de vontades. Ela suava em bicas enquanto mexia e remexia os ingredientes no caldeirão buscando o ponto certo da massa para, no fim, eu fazer pouco caso e preferir um pirulito adquirido na venda do senhor Silo.

Mas o castigo veio a galope. Um dia, dona Hortênsia voltou de uma viagem ao sítio de sua irmã, trazendo um colossal carregamento de sagu, suficiente para alimentar um batalhão de jovens soldados com sadio apetite. Mas, parece que aceitou a doação um tanto contrariada. Sabe-se lá onde foi que seu cunhado arranjou aquele saguzal. Como também era advogado, deve ter defendido alguma causa para o dono da fábrica de sagu e recebeu os honorários em mercadoria. Dona Hortênsia arquitetou uma ou duas variações. Ao vinho. Com morangos. Depois, tomou raiva das bolotinhas e mandou Vó sumir com elas de suas vistas. Teve início então, a saga do sagu. Era sagu com groselha, com café, com banana e sem banana. Com abacaxi, maracujá, fatias de maçã e até com suco de beterraba. Sagu com leite, sagu… com sagu…

 Vó, seguia firme no propósito de aplicar o elemento em nossa dieta. Até o pobre do Clécio entrou na dança, carregando potes e mais potes de sagu para o seu cômodo.

– Todo mundo tem que ajudar!

Era o que Vó alegava, distribuindo saguzadas para a vizinhança.  

Desisti de visitar a travessa que Vó salvou do lixo na casa de dona Hortênsia. A travessa que foi descartada porque tinha um lascadinho e passou a enfeitar nossa geladeira aos domingos abrigando deliciosas porções de mingau, pedacinhos perfeitos de manga picada envolvida em calda de laranja, cubinhos de gelatina tremulante ou creme de abacate. Por muito tempo, a pobre louça já sofrida pela rejeição, permaneceu possuída pelas bolinhas que pareciam se multiplicar a cada minuto. Um saguzeiro.

Um dia, abri minha gaveta e encontrei um saquinho de tecido recheado, amarrado com fita. Fiquei de cabelo em pé. Mãe tinha inventado uns tais sachês feitos com sagu, mergulhado em seiva de alfazema. Chegou o momento em que Vó passou a criar versões salgadas. Com legumes ou molho de tomate. Suspeito que até os gatos comeram sagu com notas de sardinha. Foi uma invasão.

Engana-se quem imagina que vou arrematar essa prosa dizendo que, tomada pela saudade, hoje em dia, eu daria qualquer coisa para saborear uma tigela de sagu preparada por Vó. Saudade, sim. Sagu? Nem em pensamento.    

Fusíveis, trombones e pianos

Na vila onde morei durante a infância, não havia casas com banheiro privativo. Nem mesmo na ampla residência dos senhorios, a única do primeiro pátio. A diferença é que, apesar de também ficar do lado de fora, o toalete que os atendia era destinado ao uso exclusivo da família. Nas demais áreas, os inseguros espaços instalados de maneira improvisada, eram coletivos. Compartilhados pelos habitantes de dois ou três covis, geralmente, grupos numerosos, não eram, obviamente, suficientes. O emprego de urinóis, mais conhecidos como penicos, era inevitável. Principalmente à noite. Entre outros motivos, quase ninguém tinha disposição ou coragem de sair pela madrugada e enfrentar a escuridão para se aliviar. Era um tempo de gargalhadas ecoando e assombrações de plantão. Pela manhã, o trânsito de moradores carregando seus vasos particulares, a fim de esvaziá-los, tornava-se um desfile bastante constrangedor.

Lembro de mãe me mandar logo cedo verificar se o banheiro estava ocupado. Me recordo também que, se dois chuveiros fossem ligados no mesmo momento, ainda que em pátios diferentes, o fusível queimava. Quando isso acontecia em dias muito frios, nos deparávamos com mais de uma dificuldade: não se tratava apenas de um jato de água gelada sobre o corpo. Estávamos do lado de fora, então, ainda era preciso caminhar pelo quintal até alcançar o cômodo que ocupávamos. Eu tinha cabelos bem longos. Algumas vezes, o fusível morria enquanto eu estava com a cabeça cheia de espuma. Mãe ficava furiosa. Explodia a gritaria, o bate-boca. Ela acusava o autor da proeza de ter ligado o chuveiro de propósito, só para ter o prazer de vê-la numa situação desconcertante. E disparava ofensas terríveis que, na opinião de Vó, algum dia, ainda resultariam num embate físico.

Apesar de o problema ser corriqueiro, nunca dispúnhamos de fusíveis sobressalentes. Sempre que o infortúnio nos sobrevinha, era preciso arrecadar dinheiro e ir até a venda comprar um substituto ao que havia se queimado. Muitas vezes, Vó esquentava água para que o processo interrompido fosse finalizado, lamentando pelo gás investido na operação. Eram muitos os inconvenientes causados pelo uso coletivo do banheiro. Compartilhar um ambiente tão reservado com desconhecidos era penoso. Mãe se indignava com a falta de manutenção e preservação do local. Com as revistas de safadeza que os homens enrustiam atrás do pedestal lascado da pia. Com o cesto vertendo papel rosa-mortadela. Com os furos que apareciam na porta e na parede, escavados por alguém que pretendia espiar intimidades. Mas, geralmente, quando ameaçava esmorecer pelo desânimo ou estourava em crises nervosas, histórias de antigamente saltavam da boca de Vó, empurradas pelas lembranças.

– Hum…não queira saber. No lugar onde eu vivia quando era criança, tudo era muito mais difícil. Não tinha banheiro do lado de dentro e nem do lado de fora. Somente um buraco rodeado de madeiras velhas, cavado no chão do terreiro, atrás de uma bananeira. Banho inteiro, só tomávamos aos sábados. E com água fria!  Durante a semana, era lavar rosto, mãos e pés. Das partes, a gente cuidava com ducha de asseio. Aqui, não temos do que reclamar.  

Vó era perita em disputar o jogo da maior desgraça. Ninguém se atrevesse a pretender expor uma experiência cabeluda perto dela sem ouvir outra muito pior. Se lhe contassem, por exemplo, que um sujeito, caminhando em frente a um sobradinho, fora atingido na cabeça por um trombone, ela fazia questão de não demonstrar nenhum espanto.

– Pois! Estou dizendo, comadre. O trombonista tromboneava na janela e se assustou com a chegada de um gato. Soltou o instrumento no exato instante em que o camarada estava passando lá embaixo.

A réplica era apresentada com apática brandura:  

– Apois! Isso não é nada, compadre. Eu soube de um homem que, conduzindo uma vara de porcos numa ladeira, foi atropelado por um piano de cauda.

Não dava gosto concorrer com ela.

Vó era a feliz proprietária de uma grande bacia de alumínio, utilizada para inúmeros fins. Na falta de uma área gramada para quarar roupas, o bacião a socorria. Ela ensaboava as peças e as depositava no recipiente de bordas amassadas. Tomei muitos banhos de bacia. Era emocionante enfiar os pés na água e experimentar a temperatura. Eu me sentava e buscava coragem para molhar o tronco, com o auxílio de uma canequinha. Mas, nem sempre eram banhos arranjados para solucionar falhas na caixa de luz. Algumas vezes, eram premeditadamente elaborados, temperados com ervas, especiarias e até pétalas de rosa. Banhos rezados, acompanhados de água benta e vela acesa, seguidos de cachimbadas e gotas de Seiva de Alfazema atrás das orelhas e nos pulsos. Também existiam as fórmulas para tratamento. Sobre o velho guarda-comida repousavam garrafas que continham preparados para curar e espantar diversos males. Embebidas em álcool, as folhas soltavam sumo. Cânfora. Arnica. Unguentos, beberagens. Pessoas da vizinhança batiam à nossa porta com frequência, solicitando o socorro das garrafadas.

Quando nos mudamos para a COHAB, o pequeno banheiro que o quarto e cozinha coberto de telhas possuía, nos deixou encantadas. Só nosso! Tão pequeno era que, mal dava para se mover dentro dele. As paredes estavam manchadas, a tinta deteriorada. Do chão cimentado subia um cheiro fortíssimo de urina impregnado. Mãe interditou a entrada. Proibiu o uso até que tudo fosse desinfetado. Para lavar a privada sofrida, utilizou um produto que tinha a cara do diabo estampada no frasco. Bom, na verdade, eu nunca vi o diabo, mas sei que a imagem o representava. O acesso só foi liberado quando mãe considerou o local digno de ser reinaugurado. Sob nova direção! Finalmente, um pouco de liberdade. Mas, a fiação estava comprometida. A lâmpada não respondia ao chamado do interruptor e, se não havia luz natural, era preciso habilitar o tato. Nos acostumamos à ausência de iluminação. Tantos anos passados e, às vezes, ainda me esqueço de acender a luz quando vou ao banheiro. Demoro a perceber. Mas, o chuveiro… ah! O chuveiro… funcionava perfeitamente. E os banhos, mesmo que tivessem o tempo de duração calculado e fiscalizado, já não ameaçavam a existência frágil de nenhum fusível. Nem a integridade física de mãe, que segundo Vó, explodia em crises de cólera com frequência, porque não rezava. Na opinião dela, nenhum de nós se dedicava à devoção.

– Com Deus me deito. Com Deus me levanto! Ao menos, repitam assim, para não anoitecerem feito burros e amanhecerem como cavalos.

Era fervorosa em suas crenças. Proferia bençãos sobre os alimentos, demonstrando respeito por toda e qualquer refeição.  

– Tanta gente passa privação. Tanta…

Me ensinava a também agradecer. Não só pelo pão de cada dia, como gostava de dizer. Por todo o bem que nos cercava. Mas, o que me fazia ser grata sem estímulo algum, ainda que inconscientemente, era abrir o registro do chuveiro. Eu não conseguia encarar tal ação e seu resultado com naturalidade. Ficava comovida. Fico, ainda hoje. Me impressiono ao observar a água verter em abundância. Sigo comemorando por não ter que atravessar o pátio depois de cada banho. Ou temer o jato frio repentino, provocado pelo colapso do fusível, embora ainda tenha que lidar, eventualmente, com o esgotamento de resistências. Tomar banho quente, para mim, é um evento.

Vó, geralmente, enrustia os mimos que, porventura, recebia. A não ser que fosse um disco, coisa que ela estreava na mesma hora. Mas, se ganhava uma anágua novinha, a reservava para usar numa ocasião especial, que quase nunca acontecia. Assim também ocorria com os lencinhos de renda, leques e outros badulaques angariados em datas comemorativas. Costumava ser presenteada com sabonetes finos em seu aniversário e no dia das mães. Eu torcia para que as barrinhas aromáticas fossem colocadas em uso. Mas ela preferia depositá-las nas gavetas, para que contaminassem os tecidos. O perfume, porém, acabava perdendo a potência com o tempo. E a base ressecada tornava-se inútil. Creio que, por isso, desenvolvi o hábito de estocar sabonetes. Mas, ao contrário de Vó, desfruto de todos eles. Tenho prazer em reabastecer meu depósito de pequenas alegrias. Apesar de ter elegido uma fragrância favorita, experimento variar.  Me distraio organizando os pedacinhos de delícias, envolvidos em papel colorido. Os que têm essência de flores, me fascinam. Os amadeirados ou compostos de ervas me arrebatam. Vó selecionava elementos para os banhos de proteção e descarrego. Eu escolho sabonetinhos. Há dias em que separo mais de uma qualidade, tentando recriar uma solução poderosa entre a lavagem e o enxague, considerando questões de energia e equilíbrio intuitivamente. Por vezes, sinto-me constrangida ao notar o deslumbramento que recaí sobre mim quando me encontro diante de prateleiras repletas da variedade que oferecem as mais tradicionais casas do ramo.

Mesmo com o emprego dos rituais, passávamos por situações extremas de precariedade. A lógica da nossa fé nos levava a concluir que, sem a ajuda dos banhos e simpatias, tudo seria pior. Por isso, era imprescindível que nos sentíssemos revestidas pela camada protetora aplicada pelos costumes ancestrais que Vó perpetuava e que, de vez em quando, me aventuro a reproduzir. A escassez de canteiros, no entanto, não me permite fazer isso com frequência. Cultivo em vasos algumas plantinhas terapêuticas. Minha produção é tímida, mas há épocas em que consigo colher porções valiosas. Não conto com a comodidade e o conforto que oferecia a velha bacia. Valho-me de um balde como substituto. Munida de uma canequinha, como Vó me ensinou, lavo o corpo. E a alma. Principalmente, quando me sinto frágil, suscetível. Ameaçada, como um fusível instalado na caixa de energia da vila. Na iminência de ser atingida por um trombone. Ou, atropelada por um piano de cauda. Inútil, como uma barra esquecida numa gaveta. Reproduzir os ensinamentos que ela deixou é o jeito que encontrei para preservar sua memória, sua passagem por estas bandas. De tentar impedir o esgotamento da resistência. E de me conectar com uma espécie de infinitude, que evoca sua presença. Num cheiro, num toque. Numa lágrima, produzida pelo inesgotável estoque de saudade que se mantém espontaneamente reabastecido dentro de mim. 

Quaresma

Madrinha Hortênsia, a eterna patroa de Vó, juntava sobras durante a semana inteira. Aos sábados, eu me levantava cedo e partia para o casarão da Rua Esteves, munida de duas ou três sacolas. Vó já não podia trabalhar com frequência, mas mantinha vínculos. Servia de guardiã quando a família viajava em férias, passava as camisas do doutor Mendonça e do recém-formado advogado, doutor Mendonça Filho. Era escalada para liderar a cozinha durante as festas e jantares que aconteciam no palacete e, de vez em quando, para orientar a faxina, realizada agora por corpos mais jovens e, consequentemente, menos experientes. E continuava herdando os resíduos semanais. Sacos de pão amanhecido, que viravam torradas, pudins ou farinha de rosca. Frutas passadas, mas aproveitáveis ainda para calda e compotas. Em dias comuns, havia também iscas de carne. Mas, na época quaresmal, somente amarrados de verduras castigadas, com folhas amareladas e legumes com pontas e cascas murchas. Dona Hortênsia, por causa do olfato delicado, não permitia que peixes fossem acondicionados em seu refrigerador modelo de luxo. Eles vinham da peixaria direto para o preparo. E, se restasse qualquer vestígio nas panelas, não podiam ser armazenados. Rosa, a empregada nova, é que era contemplada com as iguarias. Para desgosto de Vó.

Também procedíamos a pausa carnal, apesar de nunca termos podido nos declarar propriamente católicas. Não é que não quiséssemos. Ocorre que, possuíamos restrições. Nossa casa era formada por mulheres repudiadas, cujos filhos, tinham o imponente campo “Nome do pai”, em branco nos documentos. Então, íamos à igreja eventualmente. Mãe, na rebeldia de sua juventude, não se prestava. Mas, Vó, não faltava em missas de sétimo dia, nem deixava de visitar Nosso Senhor morto, às vésperas da Páscoa. Ficava ainda mais séria dentro da igreja. Se punha contrita. Não sabia repetir de cor as palavras das ladainhas como quase toda a gente. Fingia que estava rezando com os olhos fechados. E nunca entrava na fila pra receber o corpo de Cristo. Nessa hora, disfarçava se abanando com o leque amarelo corroído, secando a testa, alegando mal-estares. Quando pedi pra cursar o catecismo, foi a maior bola fora. Mãe e Vó, ficaram sem graça. Vó, principalmente. Filho de mãe solteira não podia. O padre não deixava. A mulher, pra criar os filhos debaixo da proteção da santa madre igreja, precisava ter um marido. Ou ser viúva, condição muito respeitável. Era uma situação doída nas duas. Eu notava. Desconversavam envergonhadas. Se sentiam criminosas. Ainda assim, respeitávamos a quaresma. Poupávamos além do consumo de carne, que era tímido habitualmente, palavras sujas, gritarias e lamentações. Era uma espécie de bandeira branca hasteada. A gente sempre tinha do que reclamar em nossa casa.

Ganhávamos sardinhas frescas do senhor Manoel-jardineiro, o senhorio. O cavalo esmagou sua perna quando a carroça tombou na ladeira. O acidente rendeu-lhe um olho vazado. O olho morto ficou azulado. Ele prometeu que, se a perna se salvasse, ajudaria aos pobres pelas datas santas. A perna não precisou ser amputada. Ficou torta, dependente da bengala. Seu Manoel cumpria a promessa, desde então.

Pois, naquele sábado, chegando da visita à casa de madrinha, encontrei Vó limpando peixe no tanque. Uma bacia grande de sardinhas. Ela utilizava uma faquinha de cabo curto e dava o talho. Retirava a barrigada num único puxão. Algumas, ela decepava e espalmava, para preparar no molho, à moda escabeche. Podíamos saborear a conserva por dias, com pão ou arroz. Outras, ficavam com as cabeças. Essas eram separadas para fritura, envolvidas no trigo, no fubá. Os pequenos cadáveres eram mergulhados numa vinha-d’alho preparada com ervas variadas, limão, sal e pimentinha preta, na vasilha quadrada de tampa. Um tesouro, presente de dona Margarida-Batateira. Era um ciúme doente que Vó tinha da tal vasilha. Que lhe batessem na cara, mas não bulissem no xodó. As sardinhas resistiam. Refrigeradas. Repousando, como num sepulcro coletivo. Outra coisa da qual Vó tinha orgulho declarado: a geladeira vermelha, comprada de segunda mão, com muito sacrifício. Ela fazia questão de salientar.

Levei os embrulhos para a cozinha e voltei ao quintal para ajudar Vó. O mosqueiro a rodeava, aborrecia mesmo. As bichas esverdeadas zuniam, grudavam em sua pele. Terminado o trabalho, ela lavou os braços e o rosto com sabão de pedra. Jogou baldes d’água nos pés e ao redor do tanque. Ordenou que eu me ajeitasse depressa. Levaríamos uma parte das doações para comadre Orquídea, amiga que Vó muito estimava e que se encontrava adoentada. Sofria do Mal de Chagas.

Alcançamos a Praça do Cruzeiro. Eu carregava a sacola com os suprimentos, mas, ainda assim, Vó dava mostras de cansaço. Nos sentamos por um instante, sob a sombra de uma quaresmeira que se derramava. Havia um pregador que utilizava a Praça como templo e apregoava sermões que garantia serem divinamente inspirados. Vó não nutria por ele a menor simpatia. Repetia que, em outros tempos, enquanto amasiado com dona Violeta-costureira, explorava a pobrezinha, fazendo com que se arrebentasse dia e noite em cima da máquina. Gastava tudo o que ela ganhava em bebida e jogo. Até que a coitada sofreu um ataque fulminante enquanto costurava. Agora, andava escondido atrás da bíblia, vivendo na casa que era de dona Violeta com uma irmã da igreja. Vó dirigia a ele caretas de desprezo. Julgava-o inconveniente e sem compostura. O homem, naquela tarde, parecia possuído. Berrava com os olhos muito arregalados, o suor empapando a camisa encardida.

– Hipócritas! Se orgulham por não comerem carne durante quarenta dias, mas seguem prevaricando. Se prostituem. Cedem a outros vícios. Melhor seria se, ao invés de jejuar de carne, se abstivessem das condutas desenfreadas. Perderá Deus seu precioso tempo fiscalizando seus desprezíveis estômagos? Além do mais, em todos os outros dias, não temem as palavras da escritura. Condenados estão ao fogo eterno!

O descanso foi breve. Podíamos ter aproveitado um pouco mais o frescor e o colorido das árvores. Mas o sujeito, se apropriava de nossa paz. Nos retiramos. De todo modo, não era apropriado chegar em hora avançada à casa de comadre Orquídea. As pessoas se recolhiam ainda pela tarde durante a quaresma. Ainda mais, comadre. Doentinha. Judiação.

Caminhei meditando sobre as palavras do pregador. Não me pareciam sensatas. Me agradava a mansidão da quaresma. As pessoas evitavam discussões e até alegrias. Vó cantava baixinho enquanto varria o terraço. Mãe não programava saídas depois do trabalho. As duas não se acusavam. Parecia até que se gostavam. Dona Dália, nossa vizinha, não ralhava com o marido beberrão. O senhor Manoel-jardineiro não me perseguia, deixando escapar da boca golfadas de saliva e de riso doentio, piscando o olho morto azul vazado, enquanto o olho vivo parecia me engolir. Nem me encurralava em algum canto do quintal, procurando levar as mãos por dentro do meu vestido de menina. Limitava-se a entregar o embrulho de sardinhas e se retirava, batendo a bengala no cimentado. Como se eu nunca tivesse sido alvo de seus ímpetos. Como se fosse eu uma criança.

Falhas

Apesar de pequeninos, bem cedo, me causaram sofrimentos. Como as crianças maldosas que, tantas vezes, negaram-me a mãos para a ciranda. E, também eram brancos. Como as crianças.

Alguns deles, tornaram-se logo escavados. Ocos. Abertos, como panelas sem tampa. Quando partículas de comida se alojavam nas erosões, eu via estrelas. É o nervo. Pode crer que é! Vó desembaraçava. Eu imaginava de que jeito devia ser o tal nervo. Um tipo baixinho, sentado num trono, vestido de manto, empunhando um cetro. Por qualquer coisinha, ficava danado. Gênio do cão, devia ter o infeliz. Num dia que, nunca esqueço, mandei pra dentro da boca uma generosa colherada de manjar, animada daquele mimo de que, raramente, eu desfrutava. Afoiteza nunca foi boa companheira. Esqueci a regra. Mastiguei o bendito doce pelas bandas do castelinho destelhado. O açúcar da calda e da massa incomodou sua majestade. Rei nervo, de sono muito leve, despertou sapateando. Gritei de dor. Pestes ruins, para mim, eram os dentes. E as crianças que me negavam as mãos à ciranda. Virava e mexia, me magoavam. Eu cismava. Será por causa das dores que, Vozinha já não possuía dentes de verdade? Usava uns postiços, com uma lasquinha dourada, agarrados à chapa rosada que ela escovava descuidada, à beira do tanque limoso. Sem a chapa, sua boca ficava murchinha. Vó ficava murcha por inteiro sem o apoio. Fragilizada. Ressabiada. Desprovida de argumentos. Sei disso, pois, numa ocasião, a chapa foi parar no conserto, no consultório dentário da avenida. Foi um tempo em que, Vó não discutiu. Não bateu boca, nem ralhou. Não comprou briga com os vizinhos. Passava o dia caladinha.  Ninguém devia notar a ausência de seu amuleto protetor.

Nas mulheres de nossa casa, sempre faltaram dentes. Eles apodreciam precocemente em suas bocas de lamuriar e cantar samba. Parecia que, tornar-se desdentada, era o ingresso para a vida adulta.  Só quando adquiriam suas chapas, conquistavam ascensão. Eu aguardava resignada que, minha arcada, se desfizesse em ruínas. Afinal de contas, parecia ser era aquela a nossa sina. Podia começar num tombo, por um soco. Pela falta de dedicação. Com o desgosto. 

Amei com intensidade aquelas mulheres, com suas falhas frontais. As admirei. Me espelhei tanto em seus dignos exemplos que, em tudo, procurei imitá-las. Imaginava minha futura patroa e as repreensões que me aplicaria. Arquitetava minhas fomes e privações futuras. Eu só queria ser digna também. Eu não sabia que, havia outra passagem. Outra rua. De tanta coisa eu não sabia. Foram elas. Aquelas mulheres carregando suas falhas, me mostraram o caminho que eu não devia trilhar. As falhas existiriam sim. Mas, não precisavam ser as mesmas.

Releituras

– O que está escrito na placa desse edifício?

– Vende-se apartamento.

– E na faixa da imobiliária?

– Aluga-se salão.

– E no letreiro daquele ônibus?

– Praça Ituzaingó.

Eu era o orgulho de Vó! Assim que aprendi a ler, me tornei para ela, uma espécie de programa decodificador. Eu podia decifrar os códigos que ela queria conhecer. Traduzir o que diziam os símbolos que, a vida toda, ela teve curiosidade de apreciar o significado. Não imagino o que é percorrer o mesmo caminho por mais de vinte anos e não compreender as mensagens que estão por toda a parte. Saber como se chama uma rua apenas por que te contaram, decorar a informação. Não desfrutar da liberdade de, ao quebrar uma esquina, observar a placa fixada num poste para saber exatamente onde está. Ainda assim, ela conhecia quase todos os nomes.

– Hoje vamos pela Major Diogo. Dona fulana mora na Cláudio Rossi. Amanhã vou passar na farmácia da Lins.

Mas, minha recente habilidade desenvolvida, proporcionava a ela o prazer de alimentar a curiosidade. E eu me sentia imensa. Lendo frases compridas, palavras dificílimas. Ela ficava admirada. E ter a admiração de Vó era, para mim, uma glória.

– Veja Vó! Esse gato da foto está perdido. Oferecem recompensa para quem encontrá-lo. Há uma criança doente por causa dele. Se chama Pompom.

– Ah! Judiação…

– A partir de amanhã a tarifa de ônibus vai ficar mais cara.

– Quem disse?

– Está escrito no jornal. Ali, pendurado na banca.

– Ah! Onde é que vamos parar?

– Vó.

– Hum?

– Eu queria um gibi.

– Esse novo, não. Na feira tem os usados. Mais baratos.

Os caminhos ficaram menos aborrecidos. Os papos mais longos e diversos. Ela dava um jeito de enxertar a informação em qualquer conversa de calçada com suas inúmeras conhecidas.

– Minha neta é um azougue. Lê de tudo!

Vó era uma apreciadora das palavras. Se ouvia uma que lhe chamava especialmente a atenção, analisava, repetia. Inseria em sua coleção. Buscava elementos para o acervo em programas de rádio e tevê. E nas canções, seu mais extenso território de exploração. Me lembro também de seu xodó com algumas expressões. Ela gostava muito de dizer:

– Isso não é do meu feitio!

Ditados a encantavam particularmente. Sobretudo, os rimados. Sonoros.

– Quem come sem conta, morre sem honra!

Imagino que, se fosse alfabetizada, seria uma leitora frequente. Um dia, enquanto descíamos a pé a rua do cemitério, ela deu de querer saber o que diziam os cartazes colados no muro. Pichações, publicidades. Tudo. Mandei bala. Disparei como guia turística, andando de ladinho, apontando.

– Amo-te, Luciana!

– Ah! Será Luciana neta de dona Constância?

Eu também não sabia. Segui fazendo meu trabalho imparcialmente.

– Adelino vereador, vote 50. Lebre despachante. O povo tem fome! Margarida, flores, coroas e arranjos. Governo corrupto.

Gaspeei em corrupto. As consoantes mudas me botavam um pouco zonza. Helicóptero. Aspecto. Recepção, cacto. Caracteres. Mas eu não deixava transparecerem minhas dificuldades.

– Domingo, no Garagem, show com a Banda Le Prechal.

Desta, também apanhei um pouco. Show. Le Prechal. Continuei. Apontei o cartaz amarfanhado.

– Amarração. Trago a pessoa amada em sete dias. Mãe Quitéria.

Vó ficou embasbacada. 

– Mais adiante, em vermelho? O que está escrito?

– Foda-se!

Fui dormir quente. Pra aprender a ser seletiva.