Tia era dessas pessoas que aumenta o volume quando o locutor da rádio anuncia uma de suas canções favoritas. Largava o que estivesse fazendo para viver o momento. Se fosse em ritmo lento ou floreado, bailava com a mão no ventre, como se um cavalheiro a conduzisse. Tocasse um samba rasgado e ela arrancava os sapatos, fervia na ponta do pé. Quem estivesse por perto, se contaminava com sua euforia. Voltarei a um antigo verão, para rever uma tarde daquelas, em que ouvíamos rádio e não pensávamos em separação. Faz tanto tempo.
– Adoro essa música!
Tia empurrou para o lado a vasilha com os feijões que estava escolhendo. Meteu o dedo no seletor do radinho e o moveu até o limite. Não me surpreendi. Alisando a pança do gato amarelão eu estava. Alisando, continuei. Ela adorava oito entre dez canções que tocavam. Das outras duas, gostava bastante. Assim que ouviu a introdução, fechou os olhos. Levantou os braços e passou a sacudi-los de um lado para o outro. Vó, como sempre, tentou disfarçar, mas o riso escapou. Mãe danou se esgoelar, acompanhando o intérprete. Tia protestou:
– Se toca, taquara rachada. Eu quero ouvir o cantor!
Mãe não deu confiança.
Jordanésia, uma moça que veio do interior de Minas e foi nossa vizinha por um tempo, se achegou sonhadora.
– Essa música… que linda… que beleza!
As quatro mulheres, cada uma a seu modo, pareciam enxergar seus desejos realizados. Prestei atenção na letra. Falava sobre um lago. De uma nova semente. Sobre umas janelas. E de felicidade. Não entendi muito bem.
Ao final da canção, tia retornou aos feijões e mãe retomou a leitura da revista. Jordanésia foi convidada a tomar café com pudim de pão. Correu encostar a porta do covil onde morava, que dava de frente com a nossa. Se abancou no canto da cozinha, alegrinha por ter companhia, com receio de incomodar. Era muito jovem e já amasiada com Maés, que a trouxe praticamente na bagagem, de uma visita que fez aos parentes. Digo assim porque, me lembro de Vó comentando que era uma judiação um homem grosseiro como aquele, carregar uma pequena delicada feito a Jordanésia para limpar suas porcarias, aturar as bebedeiras. E, ainda por cima, servir em cama e mesa.
Comemos pudim e continuamos a ouvir música, até que Jordanésia se retirou. Precisava também colocar as panelas no fogo e preparar o jantar. Antes de ir, comentou o quanto Maés era exigente com a comida, a organização das roupas, a ordem da casa e tudo mais.
– Se o tomate da salada não estiver picado em pedaços do mesmo tamanho, ele repara. Comida da véspera, não aceita, mas tenho que fazer uma boa quantidade por vez, para poupar o gás. Ele reclama quando seca o botijão. Não é todo dia que traz carne, mas quer comer carne todo dia. Pensa que sou mágica, que tiro bifes de trás das orelhas. Passa o dedo nos móveis para verificar se tem poeira. Estoura se a roupa está amarrotada, mas não compra um ferro de passar. Eu tomo o cuidado de recolher as peças da corda antes que fiquem esturricadas. Dobro tudo bem dobrado e coloco um peso em cima. Estou juntando o dinheirinho que ganho quando a senhoria me chama pra fazer algum serviço em sua casa. Quero ver se consigo arranjar um ferro, mesmo de segunda mão, mas não sei como vou explicar de onde veio o dinheiro, já que ele não gosta que eu faça esses biquinhos. Outro dia, ralhou quando contei que ela me pagou pra dar conta de um tanto de louça e limpar um bocado de verduras. Ele falou que não preciso disso, mas, quase sempre, me deixa com as latas vazias e sem uma moeda pra comprar o pão.
Quando Jordanésia virou as costas, Vó ponderou em boca pequena:
– Criatura ordeira vai ali. Lavou e encerou o chão, esfregou as paredes, teceu toalhinhas, improvisou cortinados, areou as panelas. O buraco do excomungado nem parece o mesmo que se podia espiar de fora, quando ele vivia sozinho. E o jacu, não está satisfeito.
De madrugada, teve início uma confusão e um choro sentido ecoou pela vila. Vó não se fingiu mergulhada num sono profundo. Levantou da cama e nem tirou o mandrião flanelado. Passou a mão na cinta de couro que ficava pendurada no preguinho junto à penteadeira e saiu para ver o que ocorria. A zoada vinha da toca do Maés. Por sorte, ele não havia passado a tramela. Chegou da rua com a cuca cheia de cachaça e começou a acusar Jordanésia de ser preguiçosa, ameaçando surrá-la para que aprendesse a esperar por ele acordada e com a comida aquecida. Encurralou a coitada na parede. Sei disso pois, também saltei da cama quando Vó anunciou que ia ver o que estava acontecendo e a segui. Mãe, que numa rara noite de folga, estava com a gente, acompanhou na retaguarda. Tia também se posicionou em missão. Havia dormido lá em casa. Combinara uma faxina pra uma dona nas imediações no dia seguinte. As três invadiram o cativeiro. Eu fui executar a cobertura jornalística. Os outros vizinhos se fizeram de mortos. Eram do tipo que não mete a colher. Lá em casa, não havia homem pra estabelecer idiotices dessa natureza, nem repreender atitudes ou dar palpites do tipo: vamos deixar que os dois se entendam. Hoje brigam, amanhã estão se amando… ou: isso é besteirinha de casal. E, muito menos: Ele sabe o que está fazendo, mulher precisa mesmo de correção e cabresto. Não! Lá em casa, não havia quem promovesse ou estimulasse covardias dessa falta de qualidade.
Quando Maés percebeu a patrulha que se reuniu para defender Jordanésia, ficou que nem bombinha. Gritou, expulsando as que classificou de enxeridas:
– Tenho o direito de disciplinar essa peste que só faz comer e dormir às minhas custas! Sumam daqui! Intrometidas! Fuxiqueiras!
Enquanto ele se distraiu, o corpo trêmulo de Jordanésia, escorregou até o chão. Engatinhando, ela conseguiu escapar ao domínio que o covarde exercia. Nunca que me esqueço daquela cena. Apavorada, ela rastejou enquanto Vó procurava conter o criminoso, se protegendo de uma possível agressão, empunhando na cara dele a fivela do cinturão. Tia encheu um jarro que estava sobre a pia e deu um banho no Maés, derrubando a água pela cabeça do cretino. Enquanto isso, mãe abraçou Jordanésia e a levou para o nosso cômodo. Maés, estranhamente, se sentou no chão e começou a choramingar. Vó foi incisiva:
– Experimenta ir atrás da menina e vai ver só pra quanto eu presto!
Saímos sem dar as costas e fomos verificar como estava Jordanésia. A encontramos ainda abraçada com mãe. Soluçava. Gemia. Acabou pegando no sono na cama de Vó, que se deitou ao lado dela e ficou segurando sua mão.
Todo mundo acordou bem cedo na manhã seguinte. Menos Jordanésia, que descansava como uma vítima resgatada de um longo sequestro. Mãe e tia foram trabalhar, assim como Maés. Ele procurava manter as aparências, encarnar o papel do chefe de família responsável. Do homem que agiu com energia, incitado pelo comportamento reprovável da mulher. Papel de coitado. Botou a cara na vidraça, já vestido no uniforme do posto de gasolina. Vó não demonstrou nenhum receio e ele falou em voz baixa, sem encará-la.
– Preciso pegar no batente.
Lamentou num tom de quem foi injustiçado, mas precisava seguir com a obrigação. Vó não pronunciou tico, nem taco. E, diante do desprezo com que foi tratado, ele se limitou a avisar:
– À noite, converso com ela.
Vó também ia trabalhar naquele dia, mas esperou que Jordanésia despertasse. Ela acordou com os olhos tão inchados, que mal se abriam. A impressão que dava é que nem sabia onde estava. Vó lhe serviu um golico de café. A ajudou a se levantar e a lavar o rosto, mesmo na pia da cozinha. Era o de menos. Ninguém precisou mandar. Me piquei para o quintal, ciente de que elas discorreriam uma conversa entre mulheres, que não era da minha conta. Sei dizer que, passado um tempo, as duas entraram no cômodo do Maés. Quando saíram, Jordanésia tinha trocado de roupa e carregava uma sacola. Vó acendeu o cachimbo e soltou baforadas no cangote de Jordanésia. Rezou em seu ouvido. Preparou um pão com ovo e entregou a ela, junto com duas bananas. Jordanésia se despediu de mim. E de Vó. A abraçou demorado. Subiu as escadas levando o farnel e a sacolinha. Nunca mais a vimos.
À noite, Maés quis saber sobre o paradeiro da esposa. Encheu a boca pra dizer: “esposa”. Vó respondeu que não sabia de nada. Que antes de ir para o trabalho, deixou Jordanésia em pé. Só isso. Ele não insistiu. Passou uns dias ouvindo a mesma música seguidamente. Bebia e cantava. A vizinhança já andava farta. Ninguém aguentava mais ouvi-lo gritar que não era cachorro, não. O luto durou pouco, no entanto. Não levou um mês e ele apareceu com outra moça na vila. Mas ficaram por pouco tempo. Maés se mudou com a nova esposa, sem dar até logo.
Faz tanto tempo. Hoje em dia, uma música bonita que toca no rádio, não causa o mesmo impacto que causava naquela época. É possível acessá-la em segundos numa plataforma. Repeti-la muitas vezes. Já não se aguarda pela dádiva de ouvi-la de repente, como uma benção, um bom presságio. Já não se considera o dia como de sorte, porque sua canção favorita tocou bem cedinho. Já não é urgente interromper uma atividade e viver o momento, sem ideia de quando voltará a acontecer. Mais prudente é adiar a emoção para daqui a pouco, depois de encerrar a tarefa. Salvar para escutar com calma. Mais tarde. Primeiro a obrigação.
Faz tanto tempo. Tem vezes em que, andando pela cidade, examino feições que me lembram Jordanésia. Vó nunca revelou o destino que ela tomou. Se voltou para sua cidade no interior. Se resolveu tentar a vida por aqui. Eu fico com a impressão de que a vejo de relance quase sempre. Na verdade, parece que a procuro. Numa esquina. Num ônibus. Se me deparo com um semblante pesaroso estampado num rosto bonito, penso que pode ser Jordanésia. Se observo uma andarilha vasculhando uma caçamba de lixo, me pergunto: Será? Mas, cultivo esperanças também. Instintivamente. E, quando vejo uma mulher sorrindo, gargalhando, dançando em alguma roda de samba da vida ou fazendo compras na feira, desejo ardentemente: Tomara!
Faz tanto tempo. E ainda fico imaginando o que Vó e Jordanésia conversaram, antes dela partir. As conversas entre mulheres, agora, são da minha conta. Procuro não fingir que estou mergulhada num sono profundo. Tento meter a colher, empunhar o cinturão. Não me fazer de morta. Nem sempre consigo despejar o jarro d’água, mas procuro estar disponível para um abraço. Para segurar a mão.
Faz tanto tempo. Vasculhando os arquivos da memória, revejo os furos de reportagem que cobri durante a infância, acompanhando a atuação das mulheres da minha vida em diversas ocasiões. Nós, que não pensávamos em separação, nos separamos. Quem diria. Finalmente, redigi a matéria sobre o caso Jordanésia e tive a canção de Paulinho da Viola como trilha. A canção que a encantou, naquela tarde de verão. Desejo que seu coração tenha se tornado um lago tranquilo. Que a semente de um novo amor, tenha nascido nele. Que Jordanésia tenha conseguido reabrir as janelas da vida. Que tenha cruzado com a felicidade em algum lugar onde a dor não tem razão. Agora eu entendo.
Onde a dor não tem razão
Canção composta por Elton Medeiros e Paulinho da Viola